Hoje, 29/06/2021, se completa 1 mês do falecimento do meu pai. Aí entrei aqui parar marcar um novo livro nesse post e vi esse rascunho, que escrevi em fevereiro do ano passado e deixei aqui nos rascunhos porque não sabia se queria jogar no mundo essa sensação que eu tinha de que meu pai já não era mais meu pai. E hoje pareceu ser um bom dia para finalmente postá-lo.
Alzheimer é uma doença cruel. Ver ou ter as lembranças indo embora e se perdendo num mar de confusão é lento e doloroso.
Meu pai sempre foi do tipo calado. Nunca teve muitos amigos, não gostava muito de sair, em casa enquanto éramos todos barulho, risadas e falatório, ele geralmente só observava. Meu pai era música, livro e futebol. Silêncio na hora do jornal, fala baixa, direta e reta para dar bronca e conselhos. Sem almoço durante a semana para jantar uma pratada à noite, sem falar de trabalho porque casa era lugar de descansar. Era carona para qualquer lugar que eu inventasse ir, sem reclamar do tempo que levaria ou da hora avançada em que teria que sair para me buscar. Era Abba, Zeca Pagodinho, Elvis e Sinatra. Livros enormes, sagas longas, livros de todo tipo um seguido do outro. Era filme legendado mesmo quando eu não sabia ler que era para eu acostumar a ouvir tudo na língua original, como deveria ser. Era pergunta sobre algo de história que eu deveria pesquisar e trazer a resposta para ele ver se eu havia pesquisado corretamente.
Era, porque já não é mais. Não desde aquele acidente que só veio adiantar uma doença que já estava ali, à espreita. Aos poucos ele foi deixando de ser para ficar ainda mais quieto, não conseguir mais ler, dirigir, assistir a um filme sem se perder. Foi ficando mais e mais calado, sem sair, perdido em pensamentos confusos.
Hoje meu pai acompanha poucas conversas, nunca encontra a palavra que queria falar, não consegue mais seguir a história de um livro ou filme, se perde ao ir ao banheiro da própria casa, anda devagar e cai com facilidade. Está ali presente de corpo, mas a mente parece estar sempre em outro lugar. Tem riso fácil em alguns dias, em outros é a personificação do mau humor. Sempre foi turrão, mas agora atingiu um novo nível. Sabe quantos filhos e netas tem, mas já não consegue acompanhar muito o que acontece na vida de todos.
Acompanhando meu pai no dia a dia, a gente acostuma com isso. Para de pensar em como ele era, como a realidade era outra antigamente e já nem pensa nisso. Até que encontra alguém que não sabe da doença e vê o choque e a tristeza na cara dessa pessoa quando você responde à pergunta “como está seu pai?”. Foi o que aconteceu comigo hoje, quando reencontrei um dos poucos amigos que lembro de ter visto meu pai ter quando eu era criança. Por coincidência, uma tia tinha encontrado com ele ontem e falado que meu pai já não era o mesmo. O amigo me disse que passou o dia com meu pai e as histórias que passaram juntos na cabeça, depois de saber. Que relembrou as risadas, as piadas, o trabalho que faziam juntos e os tantos domingos em que ia lá em casa e meu pai o enrolava para ir almoçar. E foi ali, naquela conversa, que a vontade de chorar me veio como um tapa na cara. Conversando com ele lembrei de tudo o que meu pai era e já não conseguimos enxergar mais nele. Me veio a tristeza por ver o quanto eu sinto falta do meu pai inteiro e saudável, do quanto ele deve sofrer por também perceber que já não consegue ser ele mesmo.
Doeu, me despedi com um sorriso e vim pra casa pensando nisso e, pela primeira vez desde a descoberta da doença do meu pai, me permiti chorar e escrever um pouco sobre ele.
Li você falando do seu pai, pensando no meu avô. Ficou muito calado, mas também ficou mais engraçado do que antes da doença, meio sem filtro. Perguntava se minha mãe estava grávida e outros comentários do tipo. Já não fazia questão do jornal, nem de comer sentado à mesa. E passava muitos dias falando em Guarani, esquecia o português. Faço o esforço de lembrar que aquele também foi ele, mas ele foi muito mais que esse homem à espera do passar dos dias. Foi dedicado à família, amou e foi amado. Hoje ambos se misturam aqui em mim, sinto falta de todas as fases deles.
Que lindo, Carô. Que boa descoberta foi voltar e ver que seu blog ainda se manteve de pé. Um abraço carinhoso, minha amiga 🌷
É bem isso, Déa. A gente tem que se esforçar pra lembrar deles antes da doença, antes deles terem mudado tanto.
Engraçado que, hoje, eu lembro do meu pai “por inteiro” com muito mais frequência, como se meu cérebro estivesse esquecendo da parte em que a gente já não reconhecia tanto ele.
Obrigada pelo carinho sempre, posso sentir daqui. ❤️